MASSACRE DO SARAMPO: QUATRO TRABALHADORES EXECUTADOS, NENHUM CULPADO PUNIDO

Na madrugada de 2 de julho de 1985, enquanto a Bahia celebrava a Independência do Brasil, um grupo de trabalhadores rurais era brutalmente atacado por pistoleiros no povoado do Sarampo, zona rural que hoje pertence ao município de Santa Luzia. À época, porém, o território ainda era distrito de Canavieiras, no sul do estado.
O ataque aconteceu por volta das cinco horas da manhã. Os posseiros, que há semanas mantinham vigília em um barracão de madeira, foram surpreendidos por um grupo de jagunços fortemente armados. Quatro camponeses foram mortos a tiros, um ficou ferido, e parte dos algozes também tombou durante o confronto. O crime chocou o país e revelou, mais uma vez, a violência histórica do campo na Bahia.
A ação criminosa ocorreu em meio a um clima tenso de disputa por terras. Os trabalhadores, organizados em busca do direito à posse, foram alvos de pistoleiros contratados por fazendeiros e grileiros interessados em explorar madeira na região. A chacina escancarou as relações entre o poder econômico local e a violência como ferramenta de dominação.
A repercussão nacional do episódio forçou o governo federal, recém-empossado sob José Sarney, a iniciar os primeiros passos concretos de uma reforma agrária. Em 1986, parte das terras da Fazenda Sarampo e da vizinha Fazenda Poxim foi desapropriada, e 66 famílias foram assentadas. A medida, entretanto, não compensou a dor dos familiares das vítimas — nem levou os responsáveis à prisão.
O ATAQUE

Os posseiros estavam alojados em uma construção precária, onde se revezavam em turnos para vigiar o local. No momento do ataque, apenas três estavam acordados. O restante dormia quando o tiroteio começou. Segundo relatos dos sobreviventes, os jagunços se identificaram como policiais federais e ameaçaram incendiar o barraco caso não se rendessem.
Os trabalhadores reagiram. Mesmo em desvantagem, houve troca de tiros. Quatro camponeses foram mortos: João Mineiro, José Cardoso dos Santos (Zequinha), João Batista dos Santos (Batista) e Raimundo Osmar Alves (Raimundão). Um quinto foi baleado na perna e conseguiu escapar. Do lado dos pistoleiros, pelo menos dois morreram e um terceiro foi ferido na cabeça.
Os líderes do bando, conforme depoimentos colhidos pela polícia, eram Valdevino José dos Santos (conhecido como Bigode), Vicente Dias Cedraz e um homem identificado apenas como Pinheiro, ex-policial militar. Eles estariam a serviço de Dely Dias dos Santos, apelidado de Dely Ruim, grileiro com interesses na extração de madeira.
No dia seguinte, um novo confronto entre a polícia e parte dos pistoleiros terminou com mais uma morte entre os capangas e duas prisões. Mas a resposta judicial parou por aí.
O PROCESSO QUE DESAPARECEU

Apesar da ampla documentação e dos depoimentos colhidos na época, o processo criminal referente à chacina ficou anos desaparecido. Somente em 2009 — 24 anos após o crime — o Tribunal de Justiça da Bahia decretou a prescrição da ação. Com isso, o mandante e os pistoleiros foram oficialmente poupados de qualquer punição.
A decisão, assinada pelo juiz Daniel Álvaro Ramos, selou a impunidade. Os acusados, mesmo denunciados por homicídio qualificado e agravantes como emboscada e assassinato mediante pagamento, jamais foram responsabilizados.
A prescrição só foi possível porque o caso passou décadas sem julgamento, numa combinação de negligência, interesses e silêncio institucional. O processo só voltou a aparecer em uma comarca do interior baiano graças ao trabalho do professor Marco Antônio Mitidiero Júnior, pesquisador da Universidade Federal da Paraíba, em um convênio com o Ministério da Justiça.
O LEGADO DE LUTA
A chacina do Sarampo foi um dos marcos da violência no campo durante os anos 1980, especialmente no governo Sarney, período com o maior número de conflitos agrários da história recente do país. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 1989 foram registrados mais de 3.400 confrontos e mais de 700 assassinatos de trabalhadores rurais.
A repercussão do massacre levou à desapropriação de terras improdutivas, ao fortalecimento das ações da Igreja Católica por meio das Comunidades Eclesiais de Base e da CPT, e ao apoio político de setores progressistas, como o PCdoB. Mas nem mesmo esse esforço coletivo conseguiu romper a cultura de impunidade.
Hoje, quase quatro décadas depois, o povoado do Sarampo integra o município de Santa Luzia, emancipado de Canavieiras em maio de 1985. A terra, antes regada de sangue, abriga famílias que lutaram, resistiram e conquistaram o direito de permanecer. Mas a ferida aberta pela chacina ainda não cicatrizou — porque justiça, até hoje, não foi feita.

Sarampo 1985

Sarampo 2022